A DIVERSIDADE DA PSICOLOGIA: uma construção teórica.
Fundamentos, História e Estudos de Psicologia

A DIVERSIDADE DA PSICOLOGIA: uma construção teórica.



KAHHALE, Edna M. Peters. A diversidade da Psicologia: uma construção teórica. São Paulo: Editora Cortez, 2002, 304 p

Entendemos que o homem se constitui historicamente enquanto homem porque se constitui em sociedade transformando a natureza para produção de sua existência. Neste processo produz bens materiais e espirituais, ou seja, produz objetos e idéias O conjunto de idéias produzidas inclui crenças, valores e conhecimento de toda ordem que refletem a realidade de um determinado momento histórico, ou seja, o pressuposto é de que a origem das idéias produzidas socialmente está na base material da sociedade. P 13

Ao desenvolver tal análise, refletiu-se sobre quais concepções epistemológicas poderiam estar implicadas nas diferentes linhas teóricas da Psicologia: idealismo versus materialismo e metafísica versus dialética. A concepção idealista concebe a existência do homem e do mundo a partir, e com preponderância, da idéia, do Pensar, sobre a matéria, ou Ser, concebendo que a idéia determina a existência e que as leis que regem o mundo são as leis do pensamento. A concepção materialista concebe a primazia do Ser, matéria, sobre o Pensar, idéia , postulando serem as relações materiais que constroem a realidade e o homem, ou seja, que a matéria determina a existência, estando esta e o mundo subordinados às leis da matéria. A concepção metafísica de pensar postula a existência de uma essência imutável, sendo que só é possível conhecer a aparência dos fenômenos e não sua essência, uma vez que esta não é acessível aos recursos que o homem dispõe para produzir conhecimento. Assim, as transformações ocorrem apenas na aparência através de mudanças lineares. (...). A concepção dialética de pensar afirma que o movimento e a transformação são a essência dos fenômenos, os quais possuem uma contradição interna, que os leva a mudanças qualitativas e quantitativas e que ocorre por saltos, complexificando cada vez mais os fenômenos; a verdade é absoluta e relativa, pois corresponde ao real num determinado momento histórico, mas se transforma ao longo do tempo. P 14

As novas forças produtivas e relações de produção no modo de reprodução capitalista são resultado do desenvolvimento do modo de produção feudal, isto é, o sistema feudal vai gerando contradições internas que o inviabilizam como sistema produtivo. P 18

A indústria moderna é incompatível com as relações feudais de produção porque exige necessariamente o atrelamento da produção do campo à produção industrial, pois o campo fornece a matéria-prima à indústria; tem necessidade de um amplo mercado interno, que permita a distribuição de mercadorias e o recrutamento de trabalhadores, neste sentido “trabalhadores livres”; exige a especialização da mão-de-obra, ... p 18

...em busca de um conhecimento cada vez mais aprofundado da realidade; ou seja, de um conhecimento que responda cada vez mais satisfatória às necessidades trazidas pelo desenvolvimento histórico das sociedades humanas. Nesse sentido, tais necessidades decorrem, em primeiro lugar, das modificações operadas na produção de bens materiais. (...). Em segundo lugar, a reestruturação social e política, requerida pela nova organização da produção, tem implícita um debate ideológico: a visão de mundo do regime feudal deve ser combatida em todos os aspectos. P 26

O ponto central dessa nova produção de conhecimento tem sido chamado de “o aparecimento da ciência moderna”, que é identificado com a retomada e o grande desenvolvimento das ciências naturais – física, química, biologia, astronomia – e com a preocupação em sistematizar um método científico de conhecimento. P 26-27

Mas, se essa produção da ciência moderna for considerada na sua relação com pressupostos filosóficos e epistemológicos, vê-se que ela está imbricada com as mudanças na concepção de mundo, de homem e de conhecimento que representam o surgimento do novo homem e da nova sociedade, sob as condições do modo de produção capitalista. P 27

No centro do debate realizado no período está a crítica ao idealismo presente na religião e nas explicações sobre o homem e a realidade, a partir da teologia e da fé, já que a Igreja era a instituição responsável pela ideologia dominante do período anterior. O debate se concretizava de maneira marcante na busca de um novo método de conhecimento. P 28

...As explicações sobre o real prescindiam de observação dos fatos da realidade e só eram aceitos se admitissem ou não se chocassem com os dogmas religiosos. Esse conhecimento filosófico tinha como área mais desenvolvida a Metafísica, que, a partir dos pressupostos oficialmente aceitos, preocupava-se em explicar a finalidade do universo, sua causa primeira. P 28

Esse conhecimento não respondia às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas do novo modo de produção, cujas necessidades só seriam atendidas se fosse possível lidar com o real de uma forma nova, por meio da criação de uma nova ciência, com método próprio, independente da filosofia e da metafísica. P 28

Assim, a ciência seria formada por raciocínios onde as conclusões (necessariamente corretas) eram decorrência de encadeamentos lógicos de premissas que via dedutiva demonstrariam as conclusões. A ciência era construída, antes de tudo, pela via da demonstração, garantida pela aplicação rigorosa de raciocínios lógicos formais (Andery, Micheletto e Sério, 1996). P 29

...o sistema aristotélico é questionamento quanto à lógica, que embasava não só o conhecimento, mas também a maneira pela qual se produzia esse conhecimento. Até então, tudo era “certeza”. Nesse momento instituiu-se a dúvida e, para superá-la, só um novo método de conhecimento. Essa discussão inicia-se com Bacon e Descartes. P 30

Bacon elabora o método indutivo, aliando a observação ao raciocínio, ou seja, partindo-se dos fatos concretos, tais como se dão na experiência, ascende-se às formas gerais que constituem suas leis e causas. P 31

...Descartes (...). Co o desenvolvimento do método dedutivo, ele coloca a razão humana em primeiro plano e a possibilidade de se conhecer as leis do Universo. P 32

A crítica ao sistema aristotélico levou, até o momento, a duas possíveis respostas sobre um método de conhecimento, que embasam, a partir daí, duas vertentes: a partir de Bacon a preocupação com a experimentação – empirismo –e, a partir de Descartes, o conhecimento pela razão e fundamentado nas leis da matemática – racionalismo. P 33

John Locke (1632-1704) (...). Locke questiona a razão como fonte de conhecimento. Para ele, não há idéias inatas; todas as idéias provêm da experiência. A fim de fundamentar essa colocação, Locke apresenta como fontes das idéias a sensação e a reflexão, ou seja, as experiências possíveis são aquelas que, através dos sentidos, transmitem as qualidades do objeto à mente e aquelas que ocorrem no interior da própria mente, através do reconhecimento das operações que esta realiza. P 34
A alma, para Locke, é, no momento do nascimento, uma “tabula rasa”, que será povoada de idéias vindas todas da experiência. Para ele, partindo dos dados da experiência, o entendimento distingue, compara e combina, e esta é a origem das idéias que julgamos inatas. P 34

O conhecimento, para Locke, é possível através do estabelecimento de vínculos entre os vários tipos de idéia. Fundamentalmente, para se chegar à verdade, deve-se estabelecer a conveniência das idéias entre si e das idéias em relação à realidade. P 35

Berkeley nega que os objetos tenham qualidades próprias e independentes do homem que os percebe. Todas as qualidades dos objetos são a eles atribuídas pelas sensações. Por exemplo, vemos um objeto vermelho e temos a ilusão de que o objeto é vermelho, tem essa propriedade. Na verdade, um animal, que vê cores de uma outra forma, ou um daltônico, não veriam o objeto vermelho. Assim, o vermelho, bem como todas as outras qualidades do objeto, não estão nele, e sim nas sensações que o percebem. O conceito de existência, de Ser, para Berkeley, é, portanto, subordinado à percepção do sujeito que sente. Um objeto é “sentido” por um conjunto de sensações, dos vários níveis que o delimitam. P 36

A discussão de David Hume (1711-1776) se dá de outra forma, embora, também, ele tenha como ponto de partida o empirismo. Para Hume, o conhecimento vem da experiência, os sentidos fornecem impressões sobre os objetos. As idéias formam-se a partir das impressões; elas são, na realidade, cópias modificadas das impressões, com o auxílio da memória e da investigação. (...) Assim, se percebemos algum tipo de relação, ela é produto do hábito e é fundamentada na crença. (...). Assim, uma idéia para a qual não há nenhuma impressão só é possível pela crença. P 37

Na moral e na política , suas propostas tinham como parâmetro o conceito de utilidade. A moralidade seria apenas o conjunto de qualidades aprovadas pela generalidade das pessoas, em função de sua utilidade. P 38

Com suas propostas, Hume responde à questão da relação entre o Ser e o Pensar de uma forma nova: estabelece, a princípio, a primazia do Ser. Mas, ao colocar que as relações entre os fatos têm por base a crença, advinha dos hábitos, e que é impossível conhecer pela demonstração e pela prova as “leis” da realidade (leis que para ele não estão na realidade e sim no sujeito), acaba por negar essa primazia. Sua posição, em última análise reforça a visão de que é o sujeito pensante que constrói a realidade, já que, por exemplo, a realidade causal não existe, é algo que existe no espírito. P 38

Kant conclui que todo conhecimento é constituído por síntese dos dados ordenados pela intuição sensível espaço-temporal, mediante as categorias apriorísticas do entendimento. Isso tem como explicação que a razão apresenta limites para o conhecimento, uma vez que nem tudo pode passar pela intuição sensível. Nesses casos, privada de qualquer ponto de apoio na experiência, a razão perde-se em contradições insolúveis. P 45

A razão pura só pode apreender os fenômenos, a aparência, e não a coisa em si. Isso porque ela tem categorias a priori que ordenam os dados da experiência. Dessa forma, o objeto do conhecimento é construído pela razão e não pode afirmar nada sobre o mundo como ele é (coisa em si), mas sim sobre as propriedades que são apreendidas e organizadas pela razão (aparência). Para Kant, o mundo é um caos desordenado; cabe à razão pura, através das categorias apriorísticas, ordená-lo. P 45

A liberdade é, então, a coisa em si, inacessível ao conhecimento, mas, postulado da razão prática. Ou, em outras palavras, a essência de todas as coisas é ser livre, o que determina que a razão prática tem primazia sobre a razão pura. Portanto, a liberdade é um conceito que não é conhecido pela razão, é postulado da razão. P 46

Para Hegel, o empirismo tem valor porque admite que o que é verdade deve estar na realidade e conhece-se pela percepção; nesse sentido, o empirismo admite o princípio de liberdade, já que o homem pode conhecer por si só. Por outro lado, critica o empirismo por negar a possibilidade de conhecer o que está além do sensível. (...). A conclusão de Hegel é que a idéia só é verdadeira se ela aparece no ser, na realidade; ao mesmo tempo, o ser, a realidade só pode ser colocada a questão da verdade por meio da idéia, da razão. Ele quer com isso eliminar essa distinção que tradicionalmente fora feita entre a idéia e o real, pois ambos seriam facetas de uma mesma unidade. P 47

....ele analisa, por exemplo, a Revolução Francesa. Segundo sua análise, em 1789 a monarquia francesa havia se tornado tão irreal, isto é, tão destituída de necessidade, tão irracional, que foi varrida pela Revolução, o que é exaltada por Hegel. O racional encontrou uma nova forma de expressão no real. O irreal era a monarquia e real, a revolução. P 48-49

Nesse sentido, é possível dizer que o real não se confunde com o existente, pois o que existe, por vezes rompe a unidade e, portanto, não é real. A superação dessa situação é possível porque a contradição entre o ser (tese) e o não ser (antítese) resolve-se no vir a ser (síntese) e esse é um movimento.... p 49

....o surgimento de algo novo não é independente de algo velho, que já existia. O pensamento tradicional via o surgimento do novo como simples oposição à destruição do velho.... p 49

Com Hegel, o movimento passa a ser entendido como algo interno, próprio do ser, já que “O ser e o nada são uma e mesma coisa”. A mudança que ocorre é a transformação de algo que é, em algo novo, por meio da negação e da superação dessa negação, ou seja, é o vir a ser que se dá através de um processo infinito. P 50

Essa visão tem como implicação que os homens que fazem a história são aqueles que dominam a Idéia (filósofos e pensadores). Nesse mesmo sentido, o Estado representa a organização racional da sociedade, ou seja, é a organização necessária em um determinado momento histórico. Entretanto, nem todo Estado existente é o necessário: ele pode ser irracional e, portanto, deve ser alterado. (...). Por isso, em cada momento histórico, cada sociedade tem o Estado que merece. Essa conclusão só é possível porque aquilo que é necessário é determinado pelo racional. P 51

Ludwuig A. Feuerbach (1804-1872), (...), em sua obra, A Essência do Cristianismo, afirma que “a natureza existe independente de toda filosofia” e que os homens são produtos da natureza; fora dela e dos próprios homens, nada existe. P 52

Dessa forma, Feuerbach rompe com o sistema hegeliano. Nega a primazia da Idéia sobre o Ser, assim como a noção de movimento implícita nesse sistema. (...) A mesmo tempo, entretanto, Feuerbach parte do materialismo, mas não o considera uma concepção geral do mundo. O materialismo é utilizado para explicar a relação do homem com a natureza e a origem do pensamento. P 52

Por outro lado, a crítica que faz à religião tradicional é no sentido de reformulá-la. O homem cria um Deus, segundo ele, como extensão de sua própria essência. Nesse sentido, esse Deus é fantasia. O que importa é o homem e a natureza. P 52

O surgimento do materialismo dialético e histórico deu-se no momento em que as ciências naturais haviam alcançado enormes êxitos e se desenvolviam num ritmo acelerado. A concepção científica havia desalojado o idealismo e a religião do terreno d s ciências naturais. P 54

A teoria evolucionista de Charles Darwin, naturalista inglês, publicada em 1859, deu uma explicação científica sobre a origem do homem e suas relações com seus antepassados animais. Darwin demonstrou que a natureza viva evolui, que o homem é um produto da natureza e o resultado de uma longa evolução da matéria viva. Suas investigações e conclusões representavam um rompimento com as doutrinas idealistas e metafísicas... p 54-55

Neste momento histórico as exigências de transformação da sociedade capitalista tornavam-se cada vez mais e as propostas de uma sociedade socialista ganhavam espaço. O Estado da Razão – fundamentado na Revolução Francesa – fracassara complemente; o contrato social de Rousseau tomara corpo na época do terror; a burguesia perdida a fé na sua habilidade política, refugiou-se, primeiro, na corrupção do Diretório e, por último, sob a tutela do despotismo napoleônico. (...). A consolidação da indústria sobre as bases capitalistas converteu a pobreza e a miséria das massas trabalhadoras em condição de vida da sociedade. P 55

Embora esses burgueses tivessem que se transformar numa espécie de funcionários públicos, de homens de confiança de toda a sociedade, sempre conservariam, frente aos operários e assalariados, uma posição autoritária e economicamente privilegiada. P 56

Os fundamentos econômicos, sociais e culturais que dão origem ao positivismo são os mesmos que geram o materialismo dialético. O momento histórico continuava sendo de grande ebulição, agora com novos ingredientes já que a burguesia tinha novas necessidades, próprias de uma classe que necessitava consolidar seu poder econômico e político e, ao mesmo tempo, combater o proletariado que já começava a ela se opor. P 57




No século XIX era necessário o aparecimento de uma ciência da sociedade, que pudesse, à semelhança das ciências naturais, ser eficaz garantindo ao mesmo tempo compreensão e controle da sociedade e das pessoas que a compunham. (...). Augusto Comte (1789-1857) [...]. Propõe uma teoria positiva, daí o nome do seu sistema Positivismo, em que se dedica à investigação dos fatos, que permitam um conhecimento utilizável baseado no empírico que leve à organização e certeza. P 58-59

Comte admite a necessidade de se melhorar a situação das classes baixas mas, sem que se destrua as barreiras de classes e sem que se perturbe a ordem econômica. As dificuldades sociais são essencialmente morais e não políticas. A ordem social se erige sob leis eternas que ninguém pode transgredir sem punição. P 59

O positivismo fundamentou epistemologicamente todas as ciências naturais e sociais, unificando os critérios metodológicos – observação, experimentação, raciocínio hipotético-dedutivo e indutivo (lógica formal), replicabilidade, previsão e controle. No entanto, tem sofrido críticas e reformulações no sentido de adequar-se às novas descobertas da física e das ciências humanas, tais como de solucionar os problemas lógicos decorrentes da linguagem, os problemas de observação, verificabilidade e experimentação dos fenômenos humanos e sociais, bem como as interferências do cientista no seu objeto de estudo. Mas a essência de suas propostas não tem se modificado. P 61

A partir da área da Medicina e da Saúde, Freud (1856-1939) e Jung (1875-1961), apoiados em questões práticas de como reintegrar indivíduos com “doenças nervosas” à sociedade, passam a estudar os processos simbólicos e a linguagem, buscando possíveis alternativas de tratamento (...). Estes pensadores, ao contrário de Wundt, não se encontravam nas universidades e presos à pesquisa acadêmica, mas mantinham suas atividades voltadas para o contato direto com as pessoas na clínica ou nos hospitais. P 92

Ao analisarem a lógica interna da fala dos pacientes, eles notaram que nem sempre havia uma relação direta com a experiência vivida. Porém, o que era relevante para a teoria não dizia respeito à veracidade dos fatos, mas à coerência interna do discurso interno do paciente. Neste sentido, eles puderam verificar que o discurso pode se referir à experiência vivida na realidade concreta ou a um desejo de passar por estas experiências. Foi a utilização sistemática do método comparativo de análise do discurso dos pacientes que levou Freud e Jung a proporem outros objetos de estudo para a psicologia: o inconsciente e o simbolismo da vida psíquica. P 93








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